quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

As Guardas Municipais e a Segurança Pública

Por Dr. Bismael B. Moraes


Resumo: Com o Dec.-lei 1.072/69, da época ditatorial, as Guardas Civis dos Estados, já existentes em 16 unidades federativas do Brasil, desapareceram; e, pela Constituição de 1988, no art. 144, § 8°, foram criadas as Guardas Municipais, as quais, por mero preconceito corporativo e pelo desconhecimento de políticos e administradores, ainda não têm sido corretamente empregadas na prevenção criminal e na segurança do povo.




Introdução


Em todo e qualquer trabalho sério sobre segurança pública, devemos nos perguntar o que, de fato, pretendemos tratar da segurança como um grande bem da coletividade ou estamos pensando em agradar governantes, chefes ou comandantes?
Queremos a ética do interesse social ou a retórica do interesse partidário, grupal ou corporativo? Visamos ao bem geral ou as nossas conveniências egoísticas?
A incansável busca do ser humano, em todas as épocas, sempre foi e tem sido no sentido de alcançar a justiça, que é o mais elevado bem social. E nessa aspiração, de alto significado moral, requereu e ainda requer uma profunda análise dos fatos, dos costumes e das condutas em ebulição na sociedade, para a codificação apropriada de normas que sirvam como padrões de equilíbrio aos indivíduos. Mas por que tanta discussão e tão pouca objetividade nesse campo?
Já tivemos a oportunidade de escrever, em 1995 (RT 715/411), sobre um fato silenciado pelos juristas e administradores; de que não há impedimento constitucional para as Guardas Municipais realizarem o policiamento preventivo dos bens, serviços e instalações dos respectivos Municípios. Mostrávamos que, "Depois de Jânio Quadros, então prefeito e São Paulo, em 1986, haver criado uma Guarda Civil Metropolitana, corajosamente tateando sobre decretos-leis federais de então, para ter uma polícia que cuidasse dos próprios municipais, a idéia (combatida pelas PMs) se espalhou. E, quando veio a Constituinte, reservaram no texto da Constituição, junto ao título "Da Segurança Pública", 0 § 8°, do art. 144, com a seguinte redação: "Os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei [grifos nossos]. Observe-se que o texto do § 8° exige uma lei (que poder ser de complemento federal) para estabelecer as atividades das Guardas Municipais. Mas ainda não foi editada referida lei. E se faz mister que os Municípios, através de suas Câmaras de Vereadores e dos respectivos Prefeitos, fiquem atentos, para não aceitarem projetos prontos, de cima para baixo, sem a discussão e o aval das autoridades municipais, fazendo das Guardas Municipais uma espécie de longa manus de órgãos federais ou estaduais, em prejuízo da coletividade local.
Também, para evitar que os Municípios paguem as despesas e, no caso do emprego das GMs, os prefeitos fiquem subordinados a ordens externas, perdendo parcela da autonomia municipal em matéria administrativa de interesse dos munícipes, ficando letra morta a figura do Estado Democrático de Direito, de que fala o art. 1° da Constituição!".



O que são bens, serviços e instalações?



No que tange às palavras "bens, serviços e instalações", que as Guardas Municipais, por força da Constituição Federal (art. 144, § 8°), devem proteger, qualquer profissional do direito, que se pretenda ético, deveria buscar-lhes o significado jurídico dentro do Código Civil brasileiro ( arts. 65 e 66 do CC/16 e arts. 98 a 103 do CC/2002), instituído por lei federal, em que encontraria a divisão dos bens públicos, no art. 99 do CC/2002, assim:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Logo se vê que, caso haja honesto interesse numa exegese que mais convenha à comunidade local ( mesmo porque ninguém mora fora do Município), as ruas, praças, estradas, terrenos, edifícios e estabelecimentos municipais, e tudo o mais que aí houver, podem e devem ser objeto de proteção pelas Guardas Municipais. Assim, atuando com base na lei, em nome do poder público e a serviço da coletividade, no interesse dos munícipes, as GMs acham-se ao abrigo da Constituição. Quem assim não entenda, por certo, não fez uma boa escola de direito, nem leu os bons mestres, ou tem interesse corporativo ou é, simplesmente, um inocente útil.
Entretanto, é oportuno esclarecer sobre a árdua tarefa que tiveram e têm os Municípios no que se refere à segurança pública.
Tão logo as prefeituras deram início à criação de suas Guardas Municipais, a pressão contrária maior foi das Polícias Militares dos Estados. E, como essas corporações trabalham muito ligadas aos governadores, estes, embora com aparência externa de democratas, fecharam os olhos às pressões descabidas. Alguns desses governantes, por ignorância, por algum motivo não confessado ou por desconhecimento do que seja polícia a serviço do povo, engrossaram o coro das PMs, de que "as Guardas Municipais não têm poder de polícia!".



Uma proposta indecente contra as GMs.


Aliás, é bom que se diga: em 1993, o Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, reunido em Belém do Pará, no mês de agosto, e com a assinatura dos 27 Comandantes-Gerais das PMs dos Estados, apresentaram ao Congresso uma "Proposta Consensual para Revisão Constitucional 93", pretendendo impor aos congressistas, para os fins de segurança pública, conceitos de "Constituição", "polícia militar", "poder de polícia", "segurança pública", procurando dizer que toda proposta era feita "consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas!".
A referida proposta, sem nenhum interesse em definir o que sejam polícia preventiva ou policiamento preventivo, imprescindível para a segurança do povo, afirma que " a polícia ostensiva possui investidura militar"! E parece até uma tentativa de "doutrinar" os deputados federais e os senadores, com a certeza de que os parlamentares não ousariam discutir um documento assinado por todos os 27 Comandantes-Gerais da PM! "Esqueceram" de que segurança pública é a segurança prestada pelos órgãos estatais (da União, dos Estados-membros, dos Municípios e do Distrito Federal, por força do art. 1° da CF/88), e difere da segurança privada, que é prestada por particulares, com vínculo empregatício a uma empresa (sem esse vínculo, esses particulares seriam jagunços).
E é razoável lembrar que, para a tranqüilidade pública, não basta que o policiamento seja "ostensivo" (à mostra, pela farda), mas deve ser preventivo (no sentido de dar segurança e evitar os crimes). O correto é o policiamento preventivo-ostensivo, ou seja: que evite os crimes e esteja à vista da população, constantemente. As palavras preventivo e ostensivo têm significado diverso, e qualquer pessoa de conhecimento mediano sabe disso: a segunda pode existir sem a primeira; e, em matéria de segurança, ambas devem se juntar.
Essa absurda proposta, sem procurar no Código Civil brasileiro o que sejam "bens públicos" (Da União, dos Estados e dos Municípios), diz que "a finalidade das guardas municiapis é mais compatível com caráter de "vigilância patrimonial" e não de serviço policial", e, para evitar interpretações tendentes "à municipalização dos serviços policiais, incompatível com o espírito da Carta Magna", no art. 144 da CF/88, propõem as GMs no Capítulo "Dos Municípios". Com isso, os senhores Comandantes-Gerais das PMs, temendo o crescimento das Polícias Municipais, que são as GMs, dirigindo-se a parlamentares, que nem sempre entendem de segurança (pois as próprias universidades, preconceituosamente, não ensinam "coisas de polícia") e pensam que coronéis da PM sabem tudo, pretendiam fazer do Guarda Municipal (servidor público do Município, aprovado em concurso) mero vigilante particular.




As GMs representam a polícia local


Uma observação; a origem das atuais Guardas Municipais, depois que as Guardas Civis foram dizimadas pela ditadura brasileira, foi a criação de uma polícia local, mais próxima do munícipe, realizando o trabalho de segurança preventiva; portanto, as GMs não devem copiar as PMs que não realizaram o policiamento preventivo, pois não se pode aprender com órgãos que não fazem corretamente a prevenção, embora cumpra a parte "ostensiva" que lhes atribui a Constituição. E a prova de que não se estuda o que sejam segurança para o povo nem o verdadeiro papel da polícia, via de regra, é o fato de os senhores prefeitos municipais, em vez de investirem numa GM de carreira e dela nomearem seus coordenadores, ou superintendentes, ou mesmo "comandantes", vindo de seus quadros, continuarem nomeando para essas funções oficiais das PMs, cujos Comandos-Gerais sempre quiseram e continuam querendo acabar com a idéia de as Guardas Municipais realizarem o policiamento, como ficou patente na proposta dos 27 Comandantes-Gerais!



Ignorância sobre o poder de polícia



Voltando ao assunto poder de polícia, sempre que o Poder Público, nos âmbitos federal, estadual ou municipal, fiscaliza algum setor de atividade social, sem dúvida, está no exercício do poder de polícia. Há um acepção genérica, que envolve a fiscalização, levada a efeito pela Administração Pública em todos os campos de atividade, para que seja mantido o equilíbrio da sociedade, e numa acepção restrita, para situações particulares ou específicas. Assim, quando se fala de polícia das construções, polícia dos direitos autorais, polícia das comunicações, polícia sanitária, polícia das profissões, polícia alfandegária, polícia de segurança pública etc, tudo isso, em síntese, refere-se à atuação do poder de polícia. No sentido estrito, para a análise a que nos propomos agora, busca-se o poder de polícia exercido pelo órgão policial.
A polícia, como todos sabem, é órgão público de prestação de serviço, tanto pode ser federal, estadual ou municipal. O que não pode haver é polícia particular. Ensina o grande jurista brasileiro Pontes de Miranda: "policiar é ato estatal, é ato de autoridade pública". E estatal é gênero para tudo o que é público - da União, do Estado ou do Município. Isso é rudimentar a quem estuda o Direito. Mesmo assim, ainda há quem faça confusão sobre a expressão poder de polícia; ouvem-se até pessoas estudadas, como jornalistas e mesmo autoridades que cometem essas falhas".

Por exemplo, no artigo O caráter subversivo do atual terrotismo (sobre as rebeliões nos presídios de São Paulo, e até de outros Estados, sobre o comando do PCC), de autoria do senador Romeu Tuam (que é delegado de polícia de Classe Especial, aposentado, e foi diretor do DOPS, em São Paulo, e superintendente da Polícia Federal, no Governo Collor), publicado no jornal Folha de S. Paulo (18.05.2006, p. A-3), de sua emenda constitucional "para outorga do poder de polícia às Guardas Municipais em convênio com os governos estaduais"! Também, em notícia sobre segurança, publicada no caderno Cotidiano do jornal Folha de S. Paulo (1°.06.2006, p. C-4). "O prefeito Gilberto Kassab disse ontem que pedirá a aprovação na Cãmara dos Deputados do projeto que dá poder de polícia à guarda civil metropolitana". E, noutras oportunidades, essas falhas jurídicas têm sido freqüentes.
Mas, em verdade, não pode haver confusão, a não ser que por mero desconhecimento jurídico ou por outro motivo não confessado: poder de polícia é, em síntese, uma faculdade da Administração Pública (federal, estadual ou municipal) para manter o equilíbrio social, visando ao bem coletivo e a manutenção do próprio Estado. E todos sabmeos que não existe, em parte alguma, um poder da polícia; há, sim, o poder de polícia, também exercido pela organização policial - da União, dos Estados e dos Municípios - em matéria que lhe seja própria, e nos termos permitidos ou não proibidos em lei. Por exemplo, esse poder é exercido pela polícia judiciária (para apurar os crimes não evitados, investigando e apurando os fatos, em auxílio à justiça criminal). Logo, poder de polícia não é um "poder da polícia civil" ou um "poder da polícia militar". É poder estatal ou público (da União, dos Estados ou dos Municípios-repetimos),também exercido pela polícia, em sua área de atribuições.
Portanto, se as Guardas Municipais forem treinadas e comandadas por militares estaduais, dois fatos graves podem acontecer:
1.° seus integrantes serão, na verdade, preparados como policiais militares (porque não se ensina o que não sabe), embora tenham o nome de guardas municipais: 2.°- o que é mais perigoso - os prefeitos, para efeito de segurança local, terão sua competência invadida por órgão do Estado (a PM), perdendo parcela da autonomia de chefes de Executivos e ficando, nesse campo, e de algum modo, sob as ordens de oficiais e até de sargentos das corporações militares estaduais!



Os Municípios, o CTB e as GMs



Acrescente-se, ainda, que o Código de Trânsito Brasileiro, que veio a lume depois da Constituição Federal de 1988, pela Lei 9.503, de 23.09.1997, estabeleceu competência dos Municípios, no art. 24, VI, "no âmbito de sua circunscrição": "executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, parada e estacionamento previstas neste Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito". Portanto, os chefes de Executivos Municipais podem, legal e perfeitamente, empregar os integrantes de suas Guardas Municipais (que devem ser convenientemente preparados para o trato com as pessoas) no policiamento de trânsito, sem a necessidade de contratar pessoas sem preparo ou empresas terceirizadas para isso.





Bismael B. Moraes

Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo - USP.
Foi, por 24 anos, professor de Polícia Judiciária e Inquérito Policial na Academia de Polícia de São Paulo, na Cidade Universitária; por 21 anos na Faculdade de Direito de Guarulhos - FIG-UNIMESP. Professor e Teorias de Policiamento e Cultura Policial, no Curso de Pós-Graduação sobre Políticas de Gestão em Segurança Pública, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP ( Santana). Tem mais de 400 artigos publicados, em revistas científicas e jornais. Foi presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo. Advogado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário